Martinho, lideranças amorosas da Galiza Combatente
(Textos do “caderno para debate” editado co galho desta data polas Assembleias Abertas Independentistas)
1) Martinho, lideranças amorosas da Galiza Combatente…………………… Assembleias Abertas Independentistas
2) Martinho, alguns traços humanos e políticos………………………………Antom Garcia Matos
Martinho, lideranças amorosas da Galiza Combatente
Assembleias Abertas Independentistas
Este ano imos dedicar o dia da Galiza Combatente à memória do nosso irmão Martinho. Nom queremos fazer isto desde a louvança ou o engrandecimento da sua pessoa nem das suas ações, nom pretendemos fazer de Martinho um herói. Os factos falam por si sós, e umhas simples notas biográficas sobre a sua vida e a sua militáncia som suficientes, sem dedicar muita verborreia ao assunto, para dar conta do seu compromisso e da sua valentia. É mais, nem sequer seria justo com a sua memoria disfarçar a Martinho de épica, como acontece tantas vezes nos relatos que construimos desde os nossos espaços. Nem justo nem útil.
A Galiza Combatente é um bálsamo que alivia o auto-ódio, esse sentir derrotista que se manifesta nessa ladainha que percorre ao nacionalismo desde o seu nascimento, que celebra aos mártires e condena às combatentes, que nega o direito a auto-defesa de um povo secularmente submetido com brutal violência e espoliado por um colonialismo rapace sobre o território.
Mas a Galiza Combatente também é um faro, um faro aceso no mar escuro que navegamos. O seu exemplo, as suas histórias, a sua qualidade humana, é referencia, é luz, para a construiçom da nossa vida, individual e coletiva. Nada é mais inútil que converter às nossas e aos nossos combatentes em figuras inumanas, inimitáveis, inalcançáveis. Ainda que achemos que com isto estamos a polir o seu brilho, só estamos a desgastar a capacidade transformadora que tem a sua memória. E a memória de Martinho esta cheia de aprendizagens e referencias válidas para qualquer militante, seja qual for o espaço ou o nível no que estiver o seu compromisso.
Em primeiro lugar, falar de Martinho é falar de humildade. E a humildade é umha qualidade que se ressalta poucas vezes nas pessoas que exercem lideranças, porque escasseia. Mesmo num movimento pequeno e humilde como é o nosso, som muitos os egos que nele manifestam a sua fame. E, sem dúvida, esta é a explicaçom de muitos dos conflitos que temos presenciado e protagonizado ao longo dos anos.
A nossa caste sempre foi humilde e viveu do trabalho honrado e sacrificado. A classe trabalhadora galega, que herdou esta dignidade e esta qualidade humana, teve em Martinho um dos seus melhores expoentes. Estes valores forom também os que abandeirou na sua militáncia política. Sempre modesto, fugia dos protagonismos, desenvolvia o seu trabalho sem gabar-se de façanhas, nunca presumia de curriculum.
A sua humildade convertia-no numha pessoa próxima. Despertava a confiança de quem o rodeava. Respeitava o mesmo ao velho e reconhecido militante que à jovem recém chegada ao movimento. Dele recebiam-se conselhos, nom lições, e nunca abandeirava a sua trajetória para obter qualquer benefício. Mesmo poderíamos considera-lo umha pessoa tímida; umha timidez que, no meio de umha guerra fratricida de egos, converte-se numha qualidade preciosa.
Num país como o nosso, no que a formaçom intelectual é sobre-valorada -a costa de desprestigiar o conhecimento popular, que foge das abstrações e dos grandes discursos para centrar-se nos factos concretos-, Martinho exerceu umha liderança sã, bondosa, singela. A sua foi umha autoridade reconhecida por quem tivo a sorte de compartilhar espaços com ele, nunca auto-proclamada em arengas infladas. Na mesma, nom nos deixou textos escritos; o seu ideário era simples e belo como o é a Verdade.
O independentismo galego topa-se num momento de reconstruçom e de reformulaçom das suas teses para afrontar umha nova jeira. Som muitos os reptos atuais. Compre tirar lições das experiências passadas, aprender de erros e acertos, e ser capazes de transmitir esta bagagem. Compre desenhar umha estratégia arredor da que organizar as forças que conservamos e as que acumulemos, e compre um mapa para umha rota na que confluamos diferentes gerações com um projeto comum. Martinho também vivenciou umha situaçom semelhante quando, após quase umha década nas prisões espanholas, voltou à rua. Era por volta do ano 1996, ano de fundaçom da Assembleia da Mocidade Independentista, e umha nova geraçom de militantes turravam do movimento. A sua posiçom sempre foi de máximo respeito e, quando anos depois, achou que chegara o momento de rebaixar o seu compromisso, fixo-o discreta e humildemente, sem fazer ruído, sem desprestigiar a quem continuavam na luita ou tentar justificar a sua opçom pessoal em questons políticas, como tantas vezes acontece.
A luz que nos deixa Martinho convida-nos a conter a vaidade e a procurar trás os conflitos que protagonizamos aquelas obscuras motivações do nosso ego e do nosso orgulho; a analisar as nossas ações desde esta ótica e a aprender a situar o bem comum por cima das nossas motivações individualistas. Diante de um mundo onde o individualismo é encirrado desde os algoritmos das redes sociais, promovendo o ódio e o exibicionismo como divertimentos, as vidas sãs, contidas, bondosas como as de Martinho xurdem como referencia inescusável.
Martinho entregou os melhores anos da sua vida à luita armada no EGPGC, onde o seu compromisso e o seu carisma o converteram num líder diferente, um líder que acentuou valores pouco comuns. Nele o termo “irmão” está cheio de significado, completo. Em Martinho o amor à Terra nom é umha abstraçom, toma forma e corpo.
A sua memória é precisa nom só para alentar valentia e força frente a destruiçom da nossa Terra. É precisa para alentar umha outra maneira de fazer política, que nos diferencie da política dos democratas e dos reformistas, da política espetáculo e dos publicistas. Umha política que atue noutro nível, profunda, que apele a ética e a moral, nossa e do nosso povo, e possibilite horizontes de comunidade e irmandade onde prenda a esperança para vitoria da Vida frente ao Capital. Que desperte as nossas almas da morbidade capitalista, que infunda esperança e alegria e que inspire nos filhos e nas filhas mais afoutas da nossa Naçom lideranças amorosas como a que encarnou Martinho.
Martinho, alguns traços humanos e políticos
Por Antom Garcia Matos
Em 1983, um pequeno barco sulcou as águas das Rias Baixas, desde Vigo a Ribeira. Era o “Cruzeiro Galego pola Paz”, organizado pola União da Mocidade Galega, no contexto das mobilizações contra a OTAN, a guerra e o imperialismo. Naquela pequena embarcação ia Martinho, como organizador e militante da UMG, e estava eu, um mais daqueles jovens nacionalistas embarcados, militante de E.R.G.A naquela altura. Nenhum dos dois superava os 20 anos. Não nos conhecíamos.
Apenas três anos depois militávamos juntos na mesma organização armada. Apresentamo-nos por primeira vez, já formando parte os dois do E.G., em 1987, no encoro da Ribeira (no rio Eume). Foi aquele um encontro breve, que marcaria o inicio de uma fecunda relação humana, na clandestinidade, na cadeia, na posterior militância política e anti-repressiva e nas vicissitudes da vida.
Entendo que em Martinho confluem uma serie de aspetos humanos e políticos que o convertem num referente de grande valor para o nosso arredismo, algo que seguramente corroborarão quantos o conheceram e tiveram a sorte e o prazer de viver ao seu lado.
O seu passo por este mundo e esta vida esteve marcado por valores e atitudes que vão sendo cada vez mais escassos: amor incondicional, irmandade, humildade, generosidade, espírito de sacrifício, honestidade e bondade. Um rasgo do seu carácter define-o muito bem: a timidez. A timidez em Martinho era um precioso regalo político. Tinha uma tradução clara a hora de ser e estar no Mundo, a hora de relacionar-se com os demais, com tudo o que o rodeava. Timidez que em Martinho, sem dúvida, tinha muito que ver com a genuína manifestação externa de um estado interno de notável submetimento do ego, essa pulsão corrosiva que nos empurra ao fratricídio, à prepotência, ao exibicionismo, ao ódio e o sectarismo. Que lindo senti-lo viver nas pontas dos pés! Deixou pegada sem pisar; foi escuitado sem alçar a voz, respeitado sem acumular cadáveres. Sobressaiu sem competir, foi reto sem ser altivo, íntegro sem ferir. Fez o que havia que fazer, sem nunca se exibir e gabar; excelente combatente, mas nunca agressivo e irascível. Fez da sua própria vida e dos seus atos a sua grande obra mestra, fermosa e transcendente. Ou entendemos algo do que uma vida como a de Martinho nos transmitiu ou não poderemos fazer-lhe frente ao cainismo que nos reclama.
Devia ter 22 anos quando ingressou no E.G.P.G.C. Acudindo a uma comparação histórica bem ilustrativa poderíamos dizer que foi o Camilo Cienfuegos da guerrilha galega. Também os dois faleceram novos. O carismático guerrilheiro cubano com 27 anos, Martinho aos 47. O carisma do nosso irmão, como foi ganhando reconhecimento, como foi seduzindo a todos/as os/as que estavam aos seu lado, radicava no seu ser, no seu estar, no seu fazer. Martinho deve inaugurar um novo tipo de militante e de liderança política na que o histrionismo e a sobreatuação, a retórica, os publicistas e teóricos, cedam passo à sobriedade da intervenção fáctica sobre a realidade, à capacidade de construir comunidade de resistência, espaços socio-políticos de irmandade dignos de enfrentar os reptos e desafios de um futuro ameaçador.
As possibilidades materiais e organizativas dos primeiros passos do EG devem-lhe muito à financiação feita por Martinho, que com enorme generosidade fez entrega à organização do finiquito íntegro da empresa naval na que trabalhava, arredor de 35.000 euros (cinco milhões das antigas pesetas). Um gesto que fala por si mesmo da qualidade e entrega do nosso irmão, naquela etapa na que o independentismo galego estava pondo as bases de um enfrentamento forte com o Estado.
Em 1986, com apenas 22 ou 23 anos, constituiu com Chao Dobarro e Jaime Castro Leal a primeira Base Operativa do EGPGC na legalidade, atuante na zona de Ferrolterra e cujo objetivo básico consistiu em operações de aprovisionamento, infraestrutura e financiação, entre elas o intento falido de expropriação de uma entidade bancária nas Pontes, que o levaria ao cárcere por primeira vez. Recordaria sempre aquela detenção da Guarda Civil pela brutalidade das torturas recebidas. Ingressou na prisão provincial de A Corunha e ao cabo de algo mais de um ano, recuperada a liberdade, retomou de novo a militância armada.
Uma detenção no Estado espanhol, o passo por um quartel da Guarda Civil, as torturas, o cárcere… são sempre episódios de uma funda carga emocional. Som-no para qualquer pessoa e também para um moço de 23 anos, mais ainda num país colonizado como o nosso, em que estas situações acabam vivendo-se com uma sobrecarga de dramatismo no entorno familiar e social. A repressão procura precisamente isto, converter este tipo de experiências em vivencias traumáticas, de jeito que cumpram uma função de dissuasão de largo espectro sobre o militante e o corpo social ao qual se dirige. Martinho viveu toda esta experiência e volveu retomar a loita armada. Podia ter dito “até aqui”. Mas continuou e fixo-o com determinação e coragem, já como militante clandestino. Sabemos que este passo não foi fácil para ele. Para quem tenha vivido algo disto, sabe como de complicado pode chegar a ser gerir as expectativas familiares e de entorno social de retorno a normalidade democrática. Martinho também as viveu e padeceu, mas a sua determinação foi mais forte que todos os condicionantes.
Trás a reanudação das suas atividades no E.G., desta volta na clandestinidade e com o nome de guerra de “Antom”, converteu-se no responsável da Base operativa que o E.G. organizou em Vigo, e desde a que atendia territorialmente a toda a província de Ponte-Vedra. Desde esta responsabilidade mostrou-se como um excelente militante. Disciplinado a hora de saber guardar as normas que exige a vida na clandestinidade, merecedor de uma autoridade ganhada com humildade e bom fazer e exemplo de notável perícia na execução das ações.
A organização armada converteu toda a infraestrutura energética e a rede elétrica em objetivo militar. O contexto desta importante decisão é de todos/as nós conhecido. Rematada a guerra civil, o novo estado nacional-catolico iniciou um projeto de guerra colonial interminável na nossa Terra. Em 1940 é que começa a verdadeira guerra na Galiza, uma guerra de controlo total, ocupação e destruição territorial, que se prolongaria até os nossos dias. O governo espanhol declarou como “absoluta necessidade nacional” a intervenção civico-militar sobre a nossa nação. Galiza declarada -usando um termo muito atual- zona de sacrifício em nome do lucro, o progresso e o desenvolvimento capitalista. O oligopólio formado por FENOSA, IBERDUERO, e ENDESA (e uma coorte de pequenas produtoras e distribuidoras elétricas) tinha-se constituído num exercito implacável, devorador de comunidades e arrasador de territórios. Biocídio, etnocídio, repressão, cárcere, populações traumatizadas, expulsadas, desprazadas. Em apenas quarenta anos consumou-se uma das maiores catástrofes que uma comunidade humana pode padecer. Quando o E.G. se constitui, FENOSA tinha uma potencia instalada total de 2,109.860 kw e faturava já na Galiza mais da metade da energia que produzia, 9.916 milhões de quilovátios hora. No nosso território, a maquinaria de guerra produzia mais do duplo de produtos energéticos do que consumia a nossa população.
Já em 1934, com motivo do movimento revolucionário de Outubro, e em 1936 e 1944, no contexto da loita antifranquista, se tinham produzido sabotagens significativas contra as linhas de transporte elétrico. Depois dalguns ataques e pequenos intentos, vai ser a base operativa que lidera Martinho a pioneira em derrubar grandes torretas elétricas de alta tensão. A que cai em Matamá (Vigo), que abriria a campanha, foi obra sua. O nosso irmão contribuiu de maneira decisiva a depurar a técnica para abater estas gigantescas estruturas metálicas, verdadeiros estandartes da colonização espanhola e do triunfo do capital sobre a vida.
Martinho vai ser protagonista, também, de uma das operações militares mais relevantes do E.G, a paralisação de ENCE nos primeiros messes de 1988. Instalada pelo regime franquista no banco marisqueiro da praia de Louriçam (Ponte-Vedra) em 1963, com revolta popular, intervenção do exército espanhol, detenções e encarceramentos, ENCE tinha que estar no ponto de mira do EGPGC. Nesta altura, na Galiza até um 41% do consumo de energia elétrica era protagonizado por este tipo de industrias elétrico-intensivas, autenticas alfaias do industrialismo espanhol, beneficiários diretos do espólio energético na Galiza e unidades avançadas de esterilização territorial. Aliás, altamente dependentes de grandes quantidades de capital e pouca mão de obra (ENCE, Aluminio Galicia, Silicio Sabón, Carburos metalicos de Cee, Aluminio y Alumina Española de Jove, Siderurgica Gallega SA… etc). ENCE supunha, ademais, o suporte da indústria eucaliptizadora na nossa Nação.
Este histórico ataque ao complexo industrial-celulósico foi preparado inteiramente por Martinho e executado pela sua base operativa, com ele pessoalmente à frente. Na mesma noite sabotou simultaneamente o subministro de luz e água à fábrica, colocando cargas explosivas na linha de transporte elétrico e na tubagem de agua que possibilitavam o funcionamento do complexo. A paralisação temporal de ENCE foi uma pequena-grande vitória para todo o movimento popular, ecologista e de defesa da Terra. E coube-lhe a Martinho o honor de fazê-la possível.
A finais de Janeiro de 1988 os militantes clandestinos do EGPGC instalarom-se em acampamentos de montanha: Um deles ao pé do rio Sil, aguas acima da presa de São Estevo, e outro ao pé da barragem das Portas, no rio Camba, afluente do Bibei, ao Sul do Maciço central e no sector meridional dos Montes do Invernadeiro, batizado pelo EG com o nome de “Augas Limpas” e cujo máximo responsável foi Martinho. A história quijo situar ao EG e ao nosso irmão na ribeira da última grande barragem construída na Galiza (rematada entre 1975-1977), obra de Iberduero, nos montes do Invernadeiro, comprados nos anos 50 por Papelera Española SA para converte-los num parque florestal industrial de coníferas para obtenção de pasta de papel. As suas artérias esclerotizadas por Iberduero a meados dos anos 70 para alimentar o sonho industrialista espanhol, e arrasado por um incêndio devastador em 1981, levarom a empresa a subasta-lo para ser comprado pola Xunta de Galicia no ano 1984, que o entregaria cinco anos mais tarde à santíssima trindade do turismo ecológico-rural-verde. Trágico compêndio da Galiza como Terra de sacrifício. E quijo a história que também aqui conflui-se o Exército Guerrilheiro e Martinho, o jovem obreiro do naval, com a sua recortada, a gelamonite, o amor profundo à Terra e a consciência de classe. Símbolo fecundo nos rescaldos da desfeita. Berro indómito, telúrico, a afirmar a vontade do Povo, a curar as feridas da Terra.
Foi o nosso irmão, como responsável do acampamento, quem trás cada jornada, escrevia um diário de campanha de controlo das atividades desempenhadas: “Diário da Base Guerrilheira de Montanha Augas-Limpas”, possivelmente o texto político mais relevante que nos teria legado se o estado espanhol não o tivesse incautado. Aqui, em Augas Limpas, Martinho entraria a formar parte do Estado Maior Irmandinho (E.M.I.) como parte de uma medida re-organizativa que supujo a remodelação e ampliação do núcleo dirigente.
Foram messes muito intensos nos que os militantes do EG se submeteram a uma dura prova de vida e loita na montanha, desafio físico e moral. E Martinho soubo estar. Segundo reza o proverbio, há três cousas que só se conhecem em três circunstâncias: a bondade de carácter, nos momentos de cólera; a valentia, na guerra; e a verdadeira amizade, quando dela há necessidade. Nos momentos mais críticos de penúria ou indecisão, ali estava o seu exemplo. Valor, afeto, nenhuma reprovação, queixa ou desaire. Duras provas onde emergem os grandes líderes. Martinho foi-no, sem dúvidas.
Uma noite de finais de 1988, Martinho, junto a outro irmão, saíram de Augas Limpas, ao pé do encoro das Portas, com destino às proximidades da cauda do encoro de Guistolas, no rio Navea, Concelho de Trives, para participarem num encontro do E.M.I. Trás 24 horas de travessia pelo Maciço Central, de madrugada, foram detidos pelos Grupos Especiais de Operações (GEO). Martinho levava consigo umha pequena mochila, algo de roupa, algumas viandas, uma maca, uma recortada e algumas revistas de temática militar. Foi entregado pelos GEO aos serviços secretos para ser torturado durante duas horas antes da saída do sol. Na escuridão da noite, entre as ruínas de algum lugar desconhecido dos montes de Trives, volveu a enfrentar-se aos torturadores com uma enorme inteireza. Com a luz do dia foi transladado à comissaria de Ourense, onde seguiriam os interrogatórios em regime de incomunicação baixo a legislação anti-terrorista. Deveu ser na tarde do segundo dia, ante a ameaça do emprego de métodos mais expeditivos, que se arrojou contra uma grande cristaleira da sala de interrogatórios, que a separava de um pátio de luzes interior. Trás o fortíssimo impacto ficou estatelado no meio de um charco de sangue.
Nunca deixará de interpelar-nos esta expressão de máximo compromisso, extrema generosidade, nobre sacrifício, encontro lúcido com a morte. Irmãos, irmãs, só em nome da Vida os homens e mulheres livres e íntegros como Martinho vão a morte. Porque a vida não tem oposto, é eterna. Quando se nega a morte, a vida perde a sua profundidade; aprendendo a morrer abrimo-nos a ela. Hoje sabemos que o medo à morte não é o que forja aos povos livres, senão o amor a vida, e que é no universo sagrado do comunitarismo e do amor à Terra onde a vida é um ritual demorado, que esta aprendizagem pode ser possível. Vida que também é dor, vida que também é sofrimento. Maximizar o prazer e evitar a dor é a suprema lei pela que a civilização industrial que nos moldura reduz ao absurdo todo intento honesto de imaginar outra forma real de existência. O drama é querer seguir a viver como o estamos fazendo.
Martinho foi encarcerado novamente, julgado no Tribunal especial da Audiência Nacional espanhola e condenado a 12 anos de prisão. Ante o tribunal que o julgou assumiu a sua atividade armada e a sua pertença ao Exercito Guerrilheiro do Povo Galego Ceive. No cárcere continuou a sua militáncia no EG e renovou as suas responsabilidades no EMI da prisão. O seu passo pola cadeia volveu refletir a sua entrega e a sua verdadeira altura humana. Foi querido e respeitado, consolidando-se como um autentico referente para o nosso movimento e mesmo entre outros coletivos de presos/as políticos/as do estado.
Recupera a liberdade depois de oito anos de condena em distintos cárceres espanhóis (Alcalá Meco e Herrera de la Mancha). O projeto político-militar tinha desaparecido. Unicamente as Juntas Galegas pola Amnistia (JUGA) mantinham as suas atividades de apoio as presas e presos da organização armada. É aqui, na organização anti-repressiva, que Martinho vai retomar a sua militáncia política e o seu compromisso independentista.
Vão ser tempos difíceis para ele. Para alguém que o tem dado tudo, aceitar a derrota é sempre um enorme desafio vital. Possivelmente seja do humus da derrota do que agromam os grandes seres humanos. Aceitar a desolaçom da derrota convirte-se, dalgum jeito, numa das práticas espirituais mais elevadas que um militante revolucionário pode e deve fazer. Podemos dizer que Martinho, também aqui, na ascese da derrota, demonstrou a sua qualidade humana, a sua elevada consciência. Teve a força suficiente para estar a altura deste desafio. Neste nobre exercício, mais uma vez, soube submeter o ego, supremo criador de conflitos. Não fez nem saldou contas, não condenou nem se condenou, mas repartiu afetos para aliviar todas as culpas; mantive afastados a queixa e o laio, essa prática auto-destrutiva das pessoas aturdidas pela realidade, a impotência e a frustração. Nem a amargura do fracasso nem a vaidade do curriculum.
Assim foi a exemplaridade do nosso irmão, também na “derrota”. Na montanha do Courel referem-se com este nome ao caminho feito na neve nos duros dias de invernia. É o caminho do esforço, o amor e a solidariedade.
Os primeiros anos da nova liberdade de Martinho coincidem com um novo tempo para o arredismo galego. Uma nova geração caminha com passos firmes pelos trilhos da loita e a pratica de métodos de auto-defesa. São os filhos/as do arredismo combativo, são as raízes profundas da resistência galega. Volverá a estar e a identificar-se com quem combatem e resistem. Dita identificação e este apoio político não os abandonaria nunca. Até a sua morte será detido em mais duas ocasiões, uma dela aos poucos messes da sua excarcelação, a raiz da sua participação num ato de protesta da mocidade independentista contra a visita a Santiago do que seria mais tarde rei de Espanha. E nesses anos participará pessoalmente em várias açoes de sabotagem, colaborando e apoiando diversas atividades de carácter subversivo.
A mestria da vida é o oposto ao dogmatismo, e Martinho não foi nunca uma pessoa dogmática nem sectária. Quando sentiu no profundo do seu ser que chegara o momento de afastar-se da primeira linha de fogo, fijo-o como fazia ele sempre as cousas, com um enorme respeito. Serenamente seguiu o conselho de um velho sábio: “Se afias demasiado o fio de uma espada esta não durará muito tempo. Deixa passo quando o teu trabalho está rematado. Este é o caminho do céu”.
É possível que sentisse supurar a certa altura a ferida da soidade, gotejo impercetível a acompanha-lo quiçá desde a sua última saída do cárcere.
Quem o conheceu nos últimos anos da sua vida sabe da sua alegria por viver, da sua faceta lúdica, até desinibida, numa pessoa tão pudorosa e discreta como ele. Como tenho dito em alguma ocasião, isto engrandeceu-no ainda mais. O gozo da vida e pela vida, o abraço que nos devolve ao magma fecundo do que somos, a dita, o júbilo, a pulsão por confluir e diluir-se no lume sagrado da celebração e o rito, é condição necessária de saúde comunitária e conforma também o carácter rebelde dos líderes do Povo. E Martinho foi-no.
O nosso irmão viveu os seus últimos anos como começou a sua idade adulta: trabalhando. Granhar-se o pão com o suor da própria frente, viver uma vida honrada e digna fruto do trabalho bem feito e honesto… foram sempre atitudes e valores primários da nossa classe obreira. Em Martinho nunca deixou de manifestar-se esse forte carácter de classe. Dizia Simone Weill que a condição proletária estava definida ante todo pelo desenraizamento, um desenraizamento que engendra idolatria. Sim, é umha idolatria que engendra progresso, civilização, destruição e alienação e escravatura. A condição proletária como combustível da modernidade capitalista.
Ora, Martinho tinha raízes, tinha Pátria, tinha Terra, e todo isto sentia-o fundamente. Renovo da nossa tribo, espírito livre, enfrentou esse duelo-desafio da condição proletária para vencê-lo. Botou-se ao monte para loitar pela Terra e para gozar dela, e no cárcere não sonhava com a cadeia de montagem, sonhava com o abraço da Terra, com sair e atravessar a Galiza andando desde a Faladoira ao Faro de Avião em jornadas intermináveis de silêncio, luz e vento.
O legado de José Manuel Samartim Bouça, “Samartim”, “Martinho”, é a sua própria vida, a sua grandeza humana. Não escreveu livros, não publicou nada, nem sequer nos deixou um poeminha por aí perdido. O Diário da Base Guerrilheira de Montanha Augas Limpas e as suas cartas pessoais, resultado de longos anos de cativeiro, são a herança escrita mais notável que provavelmente nos tenha deixado. Num país como o nosso em que o brilho da erudição, o conhecimento enciclopédico e o peor da cultura letrada levantam ainda tanta admiração, outorgar status, credibilidade e reconhecimento social e político -sombra alargada do fetichismo ilustrado e das cortes de encantamento dos amos do mundo sobre a sabedoria do povo-, a vida do nosso irmão ergue-se como um contraponto necessário, vigente. Aí está para lembrar-nos que o conhecimento mais profundo não é tanto o tesouro de um insaciável produtivismo intelectual, como a sensibilidade vivida e partilhada de um alto estado de consciência.
Porque o mais importante do que necessitamos saber está aqui, neste lugar e neste preciso momento; na clarividência da fermosura das coisas pequenas e próximas; na fecundidade comunitária, na atenção ao sagrado da Terra; na lucidez de uma vida de loita, vida esforçada, diáfana, simples e contida.
Quanto mais longe vamos, mais nos afastamos da verdade e menos sabemos. Em qualquer centímetro quadrado da nossa Terra pulsa o coração de Todo o Universo.
Viva Galiza Ceive!
Denantes Mortos que escravos!
Antom Garcia Matos
Cárcere de Teixeiro
11 de Outubro de 2022